quinta-feira, 4 de novembro de 2010

mostra - dia 14


Uma Carta para Elia, de Martin Scorsese

para terminar esse rolê todo de escrever sobre mais uma mostra, a oitava da minha vida: vocês devem ter percebido pelas cotações o quanto a safra foi fraca. não dei nenhum 4/4 (ok, uma surpresa - nada surpreendente, na verdade - aguarda vocês) e foram alguns vários 0/4. não sei se eu estou um pouco diferente, mais exigente, mais difícil de ser realmente conquistado pelos filmes, talvez esteja mesmo. mas o fato é que alguns foram prejudicados pela expectativa desproprcional (provavelmente eu nunca tinha entrado numa sala com tanta como foi pro tio boonmèe), ou por simplesmente serem fracos e quadrados e não terem quase vida nenhuma (homens e deuses grande prêmio do juri? what the hell, cannes?)

o fato é que nós estamos vindo de um ano sobrenaturalmente bom, que foi 2009, com uma das melhores safras que eu lembro de ter visto - de cabeça, tinha mother, bad lieutenant, vincere, time that remains, viajo porque preciso, thirst, polícia, adjetivo, etc etc etc, isso ficando só no circuito de arte e sem abrir pro mainstream (hurt locker, inglorious basterds) - e com certeza esqueci de coisa pra caralho aí. fico triste demais em ver que, em 2010, só uns quatro filmes da mostra merecem dividir um parágrafo com esses aí de cima (cópia fiel, tio boonmee, my joy e a surpresa nada surpreendente). basicamente, uma tragédia em forma de ano.

vou começar a destilar meu mau humor frustrado pela decepção completa com os filmes: muito bonita a iniciativa de dar o prêmio do juri em cannes pra esse um homem que grita, mas todo mundo sabe que não passa de um incentivo e de um "prêmio de consolação", praticamente um brinquedo que você dá pra um bebê por ele ter aprendido a usar o penico. é mais ou menos isso, e eu não vou dizer que não é válido - claro que é. mas já é plenamente imaginável por essa introdução o que eu achei do filme.

um homem que grita é um filme correto e bem realizado, mas longe do merecimento próprio de qualquer prêmio. passa sem efeitos pela vida, a não ser que você seja um remanescente da guerra civil do chade. não se nega o valor que um filme possa ter para o seu povo, mas como cinema ele é apenas um exemplar mediano.

e exemplar mediano é uma expressão que caracteriza lindamente clara, produção alemã sobre clara schumann, maestra, compositora, música e sabe-se lá mais o que. é um filme simpático, lotado de boa música, com boas situações e um desenvolvimento correto, mas que passa longe de empolgar.

(observação antes de ir para o que interessa. quando partimos ganhou a mostra. puta que pariu, isso passa dos limites do inacreditável. ok, não, é bem lógico, visto que os velhinhos e velhinhas da mostra adoram esse tipo de dramalhão com clichês transbordando pela boca, marionetes de tragédia e a porra toda. só posso lamentar.)

tá, vamos pro que interessa.

todo mundo sabe o quanto eu admiro martin scorsese, com certeza um integrante vitalício do meu top 5 de cineastas favoritos. vocês podem espernear, brigar, me xingar à vontade, dizendo que eu sou um fã puxa-saco, não tenho o que fazer o que mais possam querer. mas uma carta para elia é lindo demais e o melhor filme que eu vi nessas duas semanas de festival.

pronto, essa é a surpresa nada surpreendente. óbvio que o scorsese ia me salvar, não?

uma carta para elia é uma declaração de amor ao cinema e eu não devia escrever nada sobre ele. iria estragar a emoção, completamente. martin scorsese ama o cinema de uma forma intensa, devastadora, tem os filmes guardados com um carinho maior que o mundo num canto separado de seu coração - que provavelmente já é maior que o coração da maioria esmagadora das pessoas.

essa relação que ele diz ter com elia kazan é, no mínimo, uma coisa que qualquer jovem aspirante a cineasta entende perfeitamente. ele se via nos filmes de kazan, via as situações de sua vida, via os seus momentos, estudava os movimentos de câmera, a iluminação, vinte, trinta vezes. eu acredito que todo mundo que tenha paixão por essa arte tem aquela pessoa que a inspira, que parece falar por você. quem me conhece mais de perto sabe que é o que acontece comigo e john cassavetes, que aliás, é citado por scorsese nesse filme aqui.

e aí, surge um emaranhado de raciocínios que eu mal consigo explicar sem quase fundir meu cérebro. mas é essa rede de apaixonados pelo cinema que formam quase um ciclo eterno que mantem a arte viva. eu queria, um dia, ser bom ao ponto de poder fazer um a letter to martin ou, mais ainda, um a letter to john, que seja capaz de emocionar tanto os jovens aspirantes a cineastas como esse aqui me emocionou. é, acho que é o melhor resumo que eu posso fazer.

(um homem que grita - 2/4, clara - 2/4, uma carta para elia - 4/4).

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

mostra - dias 12 e 13


Hugh Hefner, de Brigitte Berman

fazem umas duas semanas que eu achei uma macumba em uma casa abandonada numa vila fantasma e botei fogo nela. tinha nomes de pessoas, milhos, muito jornal e outras coisas estranhas.

até então, nada tinha me acontecido. mas esse dia dois de novembro, coincidentemente dia dos mortos, foi de uma tenebrosidade absurda.

tudo começou relativamente bem: documentário sobre hugh hefner, o dono da playboy e um dos maiores gênios que esse universo já começou. ele já começa resumindo basicamente o que tem a ser dito: me mostre um homem no mundo que não daria a bola esquerda pra ser hugh hefner. é, eu daria. sem pensar duas vezes.

(ok, não aos 80 anos, quase morrendo, como hoje. e não aos 22, minha idade, quando ele ainda nem tinha idéia do que viria a ser a playboy. pensando melhor... me façam a pergunta de novo daqui há uns 15 anos.)

é um documentário totalmente tradicional na sua forma, feito pelo instituto canadense, ou seja, uma sumidade em documentários clássicos. apresenta o cidadão, sua vida, sua obra. entrevistas, depoimentos, imagens de arquivo, equipe não aparecendo em momento nenhum. quadrado, mas extremamente eficiente devido à complexidade de hugh e de todo seu legado para a humanidade.

são discutidos diversos temas, não só a playboy e as mulheres. toda a relação de hugh hefner com a aceitação dos negros na mídia, sendo o primeiro homem a permitir que eles frequentassem um programa de televisão e clubes que antes eram exclusivos para brancos, disseminando o jazz na sociedade, lutando pela liberdade sexual feminina, praticamente um pioneiro nas guerras contra o preconceito e a caretice nos estados unidos. com uma figura dessas, uma obra artística apenas correta dá conta de ser interessante o tempo todo.

as coisas continuavam bem com a primeira hora de símbolo, filme que galgava para o posto de melhor visto na mostra, totalmente louco, anárquico e inovador, até que uma pane geral da sala interrompeu a projeção. aí, vocês sabem como funciona: vai voltar em vinte minutos. passam-se quarenta e nada resolvido. só mais cinco minutinhos!, e assim eternamente até o cancelamento. o lado bom é que foram doze dias pra uma bizarrice dessas acontecer (comigo) na mostra! um milagre, normalmente já acontece no primeiro dia. pena que foi na sessão errada. na mais errada possível.

download sendo realizado. sei que você odeia pirataria, cakoff, mas porra, faz as coisas direito ou você nos obriga a isso. nos próximos dias, conto a impressão final sobre essa loucura japonesa.

e daí, tudo só piorava. por que não cancelaram a sessão seguinte? por que? era simplesmente brilliantlove, uma das coisas mais medonhas que lembro de ter visto na minha vida cinematográfica.

é mais ou menos assim: um casal trepa o dia inteiro, e a noite também. sem problemas, pessoas trepam. dias inteiros e noites também. ele, um completo paspalhão incapaz de pronunciar duas palavras, tira fotos dela enquanto isso. pelada, gozando, gemendo, o que mais vocês puderem imaginar. um dia, ele esquece as fotos num boteco, que são encontradas por um empresário do ramo da pornografia. ele acha aquilo genial e publica.

a partir daí, as piores situações possíveis são desenvolvidas por dois personagens que são mais irritantes, burros, imaturos e mimados que aqueles que eu já tinha descrito anteriormente, de modra. os dois são completamente vazios, além disso. não são capazes de raciocinar, parecem duas marionetes do roteiro pra filmar cenas de softporn com uma ou outra imagens de pinto e boceta e simulação de porra voando pela cena. se fosse pra definir isso aqui, definiria como um sub-9 canções. aí é possível notar a gravidade do negócio.

eu ia me dirigindo para ver howl, sobre a criação e depois julgamento de um dos meus livros favoritos, o homônimo de allen ginsberg. porém, ele não chegou. no lugar, botaram quando partimos, filme alemão que vai tentar a indicação ao oscar de filme estrangeiro. decidi ver.

e porra, QUE ERRO, carlos massari, QUE ERRO.

se brilliantlove era um sub-9 canções, esse aqui é um sub-crash no limite. ok, exagero, mas ele usa dos mesmos clichês e situações limites horrorosas pra criar todo o seu dramalhão, claro, com raízes sociais. eu já cansei de dizer infinitas vezes o quanto odeio personagens que são marionetes da tragédia inevitável e que estão ali na tela só para sofrer, sofrer e sofrer o tempo inteiro. pois bem. posso parar por aqui.

feo aladag, que tal ver um pouco de marco bellochio antes de tentar fazer um melodrama de novo?

depois, o cinema romeno. aurora, do mesmo diretor do excelente a morte do sr. lazarescu, é praticamente uma ultra-execução do modelo que esse novo cinema romeno excepcional tem feito nos últimos anos. as cenas silenciosas, os personagens cheios de dores, os planos longos, as conversas. a obra tem 180 minutos, muitos deles desnecessários, mas acaba se fechando de forma bastante digna. a exemplo de polícia, adjetivo, temos uma cena final magnífica, apesar de as duas serem deveras parecidas. aqui, fico com uma impressão até um pouco irônica da coisa. cristi puiu tem muito talento e com certeza está na minha lista de cineastas dos quais os próximos filmes são imperdíveis.

do grego na floresta, tudo que possa ser dito será chover no molhado - é uma obra interessante por seu valor conceitual, com câmera na mão acompanhando os personagens praticamente em super close quase o tempo todo. é uma exaustão de orelhas, narizes e bocas na tela. praticamente não existe nenhum diálogo, e são esses três personagens que ficam numa floresta afastados da civilização e a relação entre eles, contada por toques de pele, sorrisos, olhares e fodas. se perde muitas vezes e me parece vazio e inconsequente, mas tem seu valor experimental.

foram horas de tensão tentando descobrir se a cópia de homens e deuses chegaria ou não. na última hora, ela chegou. comemoração, todos se abraçaram. opa, não. isso foi em cannes com tio boonmee.

esse homens e deuses, filme francês que levou o grande prêmio do júri em cannes, é um retrato quadradíssimo do sequestro e assassinato sofrido por monges católicos na argélia na década de 90. trata-se de uma obra completamente dentro dos padrões cinematográficos de narrativa, de câmera, do que quer que seja. não ousa inovar em momento nenhum, não pensa adiante em lugar nenhum.

praticamente caímos de novo no que eu disse sobre hugh hefner: a narrativa extremamente quadrada sobrevive e se levanta graças ao tema interessantíssimo.

não sei vocês, mas eu prefiro coelhinhas a monges.

(hugh hefner - 3/4, símbolo - ?/4, brilliantlove - 0/4, quando partimos - 1/4, aurora - 2.5/4, na floresta - 1.5/4, homens e deuses - 2.5/4)

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

mostra - dia 11


Film Socialisme, de Jean-Luc Godard

é engraçado perceber as diferenças entre o você atual e o você de quando começou a frequentar a mostra. naquela época, além de usar gel no cabelo moicano, roupas estranhas e normalmente usar o preparo físico adolescente pra correr do extinto cineclube directv (lembrança maldita) ao frei caneca, eu normalmente usava meu tempo livre de uma hora entre filmes pra ir em livrarias ou lojas de dvds. minhas diversões eram me torturar dentro daqueles lugares cheios de objetos de desejo inalcançáveis. com o tempo, simplesmente abandonei esse hábito nada saudável.

o tempo passou e, no meio dele, houve anos que eu estive todos os dias acompanhado por ex-namoradas (não ex na época, por favor) ou peguetes, anos que não encontrei absolutamente ninguém conhecido durante toda a duração do festival e vi todos os filmes sozinhos, houve minha transição de visual. o moicano foi embora em 2004 e hoje meu cabelo é absolutamente normal, bem como o cavanhaque de sempre e a peça que entrou a pouco tempo - os óculos escuros. sou mais um na multidão. e uma exceção gigantesca - alguém que não usa roupas indies no meio daquele mar de blusas listradas ou de bolinhas. e a parte principal - nunca mais entrei na fnac, na cultura ou na 2001 vídeo. tendo uma hora livre, minha cabeça já junta automaticamente as três letras mais importantes e universais possíveis: b a r. e outras sete que são indispensáveis à vida: c e r v e j a.

dito isso, existe um preconceito gigantesco contra filmes sobre adolescentes ou romances e aventuras sexuais adolescentes nesse circuito de mostra. saindo da sessão de o mito da liberdade hoje, ouvi duas senhoras - típicas criaturas do festival - comentando que era um absurdo um filme como esse ter passado. claro, vocês nunca foram adolescentes, né? já nasceram com 50 anos, ranzinzas e "intelectuais", creio eu? parabéns, então!

a sinopse aqui é que um emaranhado de personagens na transição entre a high school e a faculdade sai à noite em busca de beijos e sexo e amor e putaria e diversão. esse é american pie, opa, errado, é o mito da liberdade. não se trata de uma comédia, mas sim de um filme que tenta entender seus personagens, claramente um olhar com carinho de quem já passou por isso. são calouros e veteranos e amigos e amigas e namoradas e piriguetes todos devidamente perdidos nesse mar, simplesmente buscando terminar a noite com alguém.

eu tenho uma tendência a gostar desse tipo de filme, uma vez que acabo me identificando pra caralho. principalmente porque a narrativa se encaminha pra um oceano de fails, e todos nós sabemos que o número de noites de festas e bebidas e busca por putaria (pra nem mencionar amor) que acaba em fail é bem maior que as que acabam em sucesso. ainda mais aqui, que os personagens são carismáticos e as situações são tão plausíveis e comuns do nosso dia-a-dia, como o veterano indo atrás da bixete gatinha e... bem, deixa pra lá.

o cinema é livre. não vamos ser arrogantes e pensar que todos os filmes tem que ser sobre filosofia ou guerra ou poesia tailandesa ou morte. não. todo mundo já foi adolescente, todo mundo já saiu à noite querendo beber até cair, trepar com alguém ou simplesmente dividir uma garrafa de vodka. não tem porque achar que isso é um tema menor que a filosofia godardiana. não é.

pra encerrar o assunto, o filme foi bem prejudicado por outra cópia horrorosa. porra, mostra, isso tá cada dia pior.

existe muito pouco a ser dito sobre esse novo godard, film socialisme. ele próprio encerra a obra com um "no comment" piscando na tela. e o cineasta francês - que todos sabem, é meu preferido, apesar de cada vez mais ser ameaçado por john cassavetes no posto - já não faz nada que se adeque à narrativa ou a estética tradicionais a pelo menos 40 anos, não ia ser agora que voltaria a isso. pelo contrário, cada vez que lança uma nova peça cinematográfica, mais transgride o que estamos acostumados, mais destrói os padrões.

é muito simples: você gosta de godard e suas loucuras? veja. vale a pena, recomendo completamente. não gosta, acha chato? passe longe. os problemas de todo mundo estão resolvidos. godard continua sendo godard e continuará até depois de sua morte. provocador, autêntico, inovador. os adjetivos mais clichês possíveis relativos a ele, mas que são extremamente precisos.

na mostra de 2004, eu vi um filme argentino chamado buenos aires 100 km, outro sobre um tema que as senhoras "intelectuais" que acham planos de florestas e filosofias de walter benjamin maiores que a vida não suportam: a transição da infância para a adolescência. nunca esqueci daquele filme, me marcou absurdamente. algumas cenas em especial tiveram uma identificação terrível. o campeonato de futebol, o primeiro beijo com a garota bonita da sala que ia embora em seguida, as coisas que antes significavam tudo na vida passando a não significar nada. marquei o nome do diretor: pablo jose meza. e esperei, um dia, outro filme dele.

foram seis anos até que, sem querer, vi na lista da mostra desse ano um tal a velha dos fundos, de pablo jose meza. opa, era ele de novo. tinha que ver, obrigatoriamente.

a velha dos fundos é um filme daquele gênero que eu admiro extremamente, os filmes sem conflito. não existe nenhuma situação limite movendo a trama, é o acompanhamento da vida de dois personagens medíocres levando suas vidas medíocres. a normalidade, o dia-a-dia, as conversas vazias, a falta de sentido em tudo. meza mais uma vez acertou em cheio pelo menos de forma pessoal comigo, já que é um tipo de narrativa que eu sempre pensei em desenvolver, e aliás tenho alguns esboços. mas não é uma obra especial, nem de perto se parece com buenos aires 100 km. não foi exatamente uma completa cobertura da expectativa, mas trata-se de um trabalho bem decente.

(o mito da liberdade - 2/4, film socialisme - 3/4, a velha dos fundos - 2.5/4)