sábado, 23 de outubro de 2010

mostra 2010 - dia 2


A Espada e a Rosa, de João Nicolau

existe uma doce ilusão que anda com você todos os anos na hora de montar sua grade pra mostra: esse ano, vou ser mais inteligente e deixar espaços de pelo menos uns 40 minutos pelo menos uma vez por dia, assim, posso me alimentar! pura e dolorosa ilusão. aos poucos, você percebe que é impossível. quando por um milagre do acaso você realmente consegue deixar esse espaço, vai ser atingido por qualquer tipo de outro imprevisto: restaurantes demorados, filas intermináveis, bares lotados. é como se uma força oculta do mundo te OBRIGASSE a almoçar ou jantar diariamente dentro das salas ou dos ônibus ou correndo pela augusta.

pior que isso, quando você insiste em almoçar decentemente sacrificando, com isso, quinze ou vinte minutos do próximo filme - o que obviamente é um erro imenso - será inevitável ter que sentar no chão ao lado da primeira fileira no filme seguinte. com o resto da cerveja na mão. com objetos estranhos tapando um pedaço da tela. e assim, segue eternamente a vida de mostra.

ano passado, um dos meus filmes preferidos na mostra foi still walking, fábula familiar lindamente dirigida por hirokazu kore-eda. o japonês, responsável também por ninguém pode saber, depois da vida, entre outras preciosidades, aparece agora com air doll. e a decepção não tinha como ser maior.

sendo direto ao ponto, o que me assusta nesse conto sobre uma boneca inflável que de repente ganha vida e sentimentos é a simploriedade como tudo é tratado. são metáforas óbvias e rasas em diálogos ainda mais óbvios e rasos. eu sou vazia por dentro, diz a personagem principal, ao que ouve a resposta todos nós somos. uau, parabéns, kore-eda!

a narrativa se desenvolve com a boneca aos poucos descobrindo o que é uma vida como humana, a convivência e as pequenas regras dessa sociedade. obviamente, ela estranha tudo e passa por situações bastante embaraçosas. a maioria dessas situações parece retirada de alguma comédia adolescente hollywoodiana com o mesmo tema. não parece nada com uma obra do mesmo homem que tinha feito filmes tão complexos como são seus três já citados nesse post, sobretudo depois da vida, no qual a discussão filosófica e metafórica alcança níveis extremos sem abandonar a beleza em momento algum.

se vocês pesquisarem ainda meu texto sobre still walking no ano passado, vão ver meu comentário sobre o fato de ser usada câmera estática em 98% do tempo. aqui, essa característica é abandonada, também por questões de linguagem que claramente se difere nas duas obras. porém, até mesmo na estética essa acaba sendo uma aparição preguiçosa da carreira de kore-eda.

agora, falemos de surrealismo.

o diretor português joão nicolau, presente na sala pra apresentar seu longa a espada e a rosa, disse em seu discurso pré-exibição algo como defendo um cinema livre, como a vida. livre de qualquer regra. e dedico esse filme aos mestres surrealistas que salvaram minha vida.

paixão, amigos. de novo ela aparece por aqui. mas antes, eu tinha visto o italiano-sardo a graça, de bonifacio angius, outro com elementos pendendo extremamente para o surrealismo. só que nada tem nenhuma condição de gerar nenhum tipo de interesse. personagens andam por estradas, figuras bizarras aparecem, desaparecem, reaparecem. a fotografia é escura, os atores são ruins. aos poucos, você se pergunta o que está fazendo naquela sala. e nada vai conseguir te responder. ah, o surrealismo.

então, o segundo exemplar, o já citado filme português. na primeira cena, o personagem principal já conquistou toda a platéia. em seguida, uma apresentação de sua vida, de seu mundo, uma aproximação. depois, uma imersão em um mundo de sonho, delírio e fantasia. se o cinema é a arte dos sonhos, como diz muita gente, a espada e a rosa é perfeito em toda sua concepção - faz sonhar. faz sentir. faz ter vontade de estar ali com aquelas figuras estranhas vivendo em um mundo aparentemente tão absurdo.

a única questão que impede a espada e a rosa de ser uma pequena jóia do nível de aquele querido mês de agosto, outra revelação portuguesa que a mostra nos deu uns dois anos atrás, é que sua duração de 142 minutos não sustenta todo o sonho e, a partir de um certo momento, o filme passa a se arrastar miseravelmente. o terceiro setor, por assim dizer, inteiro dele não possui metade do interesse e do carisma dos dois primeiros. mas é um fato que joão nicolau colocou seu nome na lista dos cineastas a se observar daqui em diante.

(air doll - 1/4, a graça - w/o, a espada e a rosa - 3/4).

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